domingo, setembro 25, 2011

Degustando meu próximo livro, "Cruz do Meu Rosário..."

Os filhos de Marta e Carlos costumavam, junto com alguns primos, passar as férias na ancestral fazenda. Em registro encontrado numa velha caixa, assim se referiu a penúltima filha do aventureiro casal:





___ Quando criança ia passar férias lá na fazenda e me lembro como se ainda estivesse diante dos meus olhos, da reprodução de um retrato a bico de pena desse senhor bigodudo - Duarte Pacheco Pereira - que mais me amedrontava, pois não sabia o que, exatamente, fazia ali na parede daquela misteriosa sala. Mas isso parecia já não ter a menor importância, mesmo porque esse capítulo da nossa história subjaz a versão da história oficial...
O velho solar ancestral construído sobre uma elevação que lhe conferia certa imponência, era tão fantástico com aquela infinidade de janelas azuis (ou verdes?), cujos peitoris assentados sobre paredes de 1.00m de largura, acomodavam deitado o meu corpo de criança, onde gostava de ficar a sonhar. Acho que já existia em mim, de forma latente, o gosto pela arte, pois comumente estava fora da realidade do que ocorria à minha volta; me sentia uma sinhazinha em seu “feudo”, instalado nos velhos salões em desuso, da parte de trás do assombroso ( e "mal assombrado") casarão, com o assoalho já carcomido em sua parte central e que, ao sentir o peso dos nossos corpos correndo ao brincar de esconde esconde, gemia pedindo sossego.
Lá, brincava com irmãos e primos e às vezes, como me distraia encarnando algum personagem de outra época, que vivia nas histórias que ouvia das minhas tias e empregados, e também no meu vivo imaginário, nunca era encontrada, ficando para trás nas brincadeiras. Quando dava por mim estava sozinha e com medo dos fantasmas que os supersticiosos diziam morar por ali. Os que via – não apenas imaginava – não eram fantasmas; mas lindas mulheres, sendo eu mesma uma delas, rodopiando em vestidos de seda parecendo verdadeiras borboletas emergindo das vaporosas saias sustentadas por anáguas com aspecto de asas coloridas; os colos cintilantes com as pedrarias ostentadas, elas imitavam pombas arrulhantes, corando aos elogios dos seus admiradores - bem, não sei se seria assim, verdadeiramente, já que entre essa época e agora, quando resolvi registrar essa história, já se passou muito tempo e poderei estar descrevendo uma imagem acrescida de outras experiências, leituras, filmes (inclusive imagens, por exemplo, de “E o Vento Levou...), e mais aquela impressão que a gente tem quando olha para um passado tão puro vivido na nossa infância - .
Um pouco abaixo, fora do casarão, ao seu lado direito, ficava o curral, onde, pelas quase madrugadas, ainda de pijamas de flanela iamos todos beber leite cru “pra ficar forte”, quando me punha a observar, encantada, o azáfama dos vaqueiros sob a orientação de Ernesto, neto de escravos do antigo Engenho. O velho vaqueiro mor distribuía as ordens em lamentoso tom de voz, remanescente, talvez, das lembranças retidas na sua memória, sobre o dia-a-dia da senzala, cujas casas, já em ruínas ainda conheci, habitadas por velhíssimos descendentes de escravos que não tiveram outro lugar para morar após se verem livres do vergonhoso estado de escravidão em que foram jogados.
Mas como desconhecia todas essas mazelas na pureza da infância, achava doce adormecer na fazenda. As lembranças do ocaso contêm ainda hoje o som da brisa fresca nos canaviais e o cheiro doce da cana-de-açúcar ao receber o bafejo dos ventos noturnos; dos gritos dos vaqueiros colocando o gado dentro do curral para passar a noite; do canto dos grilos e dos sapos – a mim, me sabia a canto – além, lá pelas tantas, dos barulhos do velho casarão, feitos por seus ativos habitantes noturnos; alguma coisa entre ratos e fantasmas, personagens das histórias contadas pelos empregados, sobre escravos arrastando grilhões e entoando cânticos saudosos que falavam da sua terra natal, de onde haviam sido brutalmente arrancados pela ganância e o desrespeito, muitas vezes com a conivência do seu próprio povo.
O amanhecer, não menos gostoso, exalava um cheiro que prenunciava as delícias que teríamos ao fartíssimo café . Aliado àquele barulho tão característico, ouvíamos ao longe o burburinho da lida dos empregados. O ranger musical do carro de boi transportando a cana recém ceifada dos pés, ao ritmo cansado da parelha de animais, e o chiar das palhas se arrastando malemolentes no chão por onde o carro passava entre buracos e saliências do barro vermelho do massapé, a caminho da usina; dos gritos dos vaqueiros separando o gado para levar aos pastos; dos bezerros gritando por se verem afastados das gordas tetas de suas mães, que agora teriam outras bocas para alimentar. Mas da cozinha...ah!...dali vinha o melhor de todos os barulhos e cheiros, como aquele do café que em breve agasalharia os nossos ávidos estômagos de crianças, com banana frita, queijo caseiro, cuscuz, beiju na manteiga, coalhada e outras delícias.
Meu avô materno era poeta e grande apreciador da música e da boemia, tendo gastado grande parte da sua fortuna pessoal ao promover festas durante as quais hospedava, e nutria, em sua própria casa toda a orquestra, que mandava vir de fora, para desespero de sua submissa esposa e felicidade da prole. Era um homem de letras e tinha um especial olhar sobre a vida.
De sua esposa, minha enigmática avó materna, pouco tenho a dizer, pois encarnava o papel da simplória matrona, apesar do nível social ao qual pertencia, que passou o pouco tempo que viveu a cuidar dos dez filhos que gerara, oferecendo o necessário sossego ao senhor seu marido, para que pudesse exercer o cargo de respeitável juiz de comarca. Morreu jovem, deixando pequenos alguns dos dez filhos, que ele, sozinho, teve grandes dificuldades em criar. Em consequência disso, espalhou-os entre a família como quem o faz com uma ninhada de gatos, o que nunca pude entender muito bem. Entretanto, quero crer que tenha sido menos por desamor e mais por absoluta incapacidade de realizar a árdua tarefa, uma vez que às mulheres sempre coube esta missão".

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