sexta-feira, janeiro 28, 2011

Qual é a nossa história, afinal?

Continuando...
E antes de entrar na “Inconfidência Mineira” como planejado, gostaria de, reforçando/ilustrando alguns momentos dessa história aqui mencionados, trazer à cena algumas joias – doravante, quando necessário, continuarei a fazê-lo -. Nessa perspectiva, isso me ocorreu em consequência de mais uma leitura de “Meu querido canibal”, de Antônio Torres. Sabemos que a cada nova leitura que fazemos de uma obra, novas percepções são possíveis, porque também nós mudamos a cada amanhecer...visto que as experiências de cada dia abrem outras nuances de realidades possíveis, e passíveis de análise.
O que se evidenciará sucintamente aqui, como um prolongamento do texto anterior, acerca da 'colonização', é a compreensão do ponto de vista do vencedor, portanto, tendenciosa, resultando em uma história imaginada e estabelecida por ele, reforçando o que venho dizendo. Porém, as fronteiras dessa história estão povoadas de versões das minorias invisíveis, das assombrações, dos fantasmas que amedrontam, não significando, porém, que não existam, mas que tenham construído sua morada num “entre lugar”, como os sem teto, sem terra, sem a camisa (padrão) do time, lugar onde se aloja a “intervenção crítica”.
Neste caso, a “heterogeneidade não se homogeneíza” na unidade da história que já foi contada; ao contrário, é uma voz que se levanta e resiste como uma realidade contraditória, embora subjacente, indelével; similares a operadores booleanos, esses fantasmas definem seus caminhos e estratégias de busca, com um software específico. Na verdade, a história desse pais se oferece como um rico hipertexto, em que nós, os sujeitos do conhecimento precisamos nos recusar a seguir em frente ignorando aquilo que não foi contado, ou o foi de forma distorcida, para descortinar um percurso que subjaz nas entrelinhas, nas fronteiras, no limbo.
É preciso rever essa história e desalojar esse estado de epifania que ela assegura aos que a contaram até hoje. Ela é uma ficção gestada em descaminhos da história real, porque comprovações documentais vêm sendo encontradas e contam uma outra versão; elas são avaliadas por estudiosos, e não podem ser desconsideradas. Fundamentada no pensamento de Boudelaire, também uma verdade absoluta e eterna inexiste, ou melhor é ficção que se torna pobre diante do fato de não se considerar outras possibilidades, outras dimensões, até porque a escrita dessa história está fundamentada em mecanismos ideológicos. É importante, fundamental mesmo, que esse foco sacralizado seja deslocado, desterritorializado, estabelecendo-se, no mínimo, um processo dialógico entre as percepções, em busca da história real.
Voltando a “Meu querido canibal”, há o impessionante episódio que presume-se ter durado de 1554 a 1567, a “Confederação dos tamoios” que, segundo o historiador Edmundo Moniz, foi um dos mais importantes capítulos da nossa história e considerada como a primeira reação dos nativos, donos da terra, que desestabilizou a confiança dos ‘colonizadores’, que não estavam iludidos quanto ao potencial de investida sobre o território de São Paulo e Santos, uma vez que os índios eram donos de grandes extensões, como parte dos territórios do Rio de Janeiro e São Vicente. Entretanto, uma traição ao tratado de paz entre os tamoios e os jesuítas, levou os ‘colonizadores’ à vitória; a trégua foi, na verdade, um ardil utilizado como uma forma de ganhar tempo, enquanto recebiam reforços e atacavam os desavisados e confiantes nativos. E assim, entre milhares de outros exemplos, foram forjados os heróis da história do Brasil.
Voltaremos...

sábado, janeiro 08, 2011

Fragmento de capítulo de "Cruz do Meu Rosário" ( meu próximo livro)

Carlos era um homem alegre, sensível, irreverente e até cuca fresca demais na opinião de sua esposa. Tinha profundo elan com a vida e profunda ligação com a arte: tocava piano, assobiava e dançava muitíssimo bem; sua segunda grande paixão era o cinema. A primeira era sua mulher.

Foi filho único de um pai muito rico e bastante permissivo também, coisa que o filho soube aproveitar, sobremaneira. Apesar de todos os esforços feitos nesse sentido, não estudou além do preparatório para ingressar no curso de medicina, por absoluta vontade do pai, Coronel Herculano, porque ele era mesmo, um bon vivant.
Ainda muito jovem o Coronel, com muita determinação e nenhum dinheiro, saiu de casa em busca do seu sonho, tendo que começar a vida como vendedor ambulante. Sendo muito sagaz, econômico e ambicioso, conseguiu juntar uma fortuna considerável como dono de garimpo, situação que lhe dava respaldo para ir diversificando suas aplicações em imóveis e armazéns de venda em grosso. Um de seus grandes aliados era o rio Paraguaçu, que nas cheias deixava a região isolada do resto do estado, não entrando nem saindo transporte de carga de nenhuma espécie. A essa altura elas eram mais ou menos previsíveis e os armazéns do Coronel ficavam abarrotados de mercadorias de primeira necessidade, incluindo o azeite usado na iluminação; assim, quando ninguém mais tinha gêneros de primeira necessidade para vender, seus produtos eram disputados a peso de ouro, como num mortal leilão, apesar dos protestos gerais. Nada, porém, podia ser feito; nenhuma alternativa de sobrevivência lhes era possível até porque, àquela época, naquela região, os ricos faziam a lei.
O dinheiro desse homem comprou, explorou e facilitou uma gama de atitudes pouco ortodoxas; só não creio que tenha se envolvido com crime de morte, embora fosse bastante comum a ação de jagunços por ali, financiada pelos ricos. Daí a se tornar exportador de diamantes foi como fogo ladeira acima; sistematicamente foi ampliando seu universo financeiro com essa única intenção: ficar rico. Para iniciar o negócio do garimpo, comprava animais de carga para fazer o transporte das tralhas dos garimpeiros, que trabalhavam como escravos para os proprietários, até os locais de extração, geralmente de difícil acesso. Todo o dinheiro ganho era sistemática e integralmente aplicado, porque o grande sonho, para começar, era ser o dono do garimpo.
A constituição de uma família foi adiada em função de sua determinação quanto ao seu objetivo maior.

Nada se sabe do seu primeiro casamento, além do fato de não ter tido filhos. Carlos nasceu de uma segunda união com uma mestiça de índio com português, após algumas tentativas abortadas e promessa a tudo quanto foi santo, sendo o sonho especialmente recomendado a São José, a quem prometera rezar o Ofício pelo resto de suas vidas.

O esperado rebento, cresceu rodeado de vontades e de primos puxando-lhe o saco, mas apenas um lhe dedicava amizade sincera, tendo sido sempre seu amigo, companheiro fiel e protetor nas grandes farras da mocidade, nas quais costumava detonar bastante dinheiro sob o olhar complacente do pai. O filho, a quem costumava chamar “cruz do meu rosário”, realizou alguns de seus sonhos, a exemplo de ter sido Imperador do Divino, ponto de honra das famílias ricas da região, menos o de se formar e ser um “dotô”, ainda que para isso tenha envidado esforços sobre-humanos, principalmente o de mandá-lo estudar na Bahia (à época, assim se costumava chamar Salvador, a capital do estado da Bahia).
Todas as facilidades foram efetivadas e todas as vontades satisfeitas para que ele estudasse. À época eram duas as alternativas para que os filhos das famílias de posses se instalassem na capital com essa finalidade: colégio interno ou hospedagem em repúblicas de estudantes, e Carlos, é óbvio, optou pela segunda alternativa. Foi o paraíso; ali encontrou todas as facilidades para ampliar sua vida de rico herdeiro, com uma leveza extraordinária; no próprio entorno da república, localizada na Rua Carlos Gomes, centro da cidade, onde morava boa parte da elite da sociedade baiana, existiam bordéis de luxo e os famosos “castelos”, onde ele costumava varar as madrugadas dançando e perdendo o dinheiro que o pai lhe facilitava ao dar crédito ilimitado numa das joalherias elegantes da cidade, talvez pela escassez de bancos. No mais famoso desses “castelos”, o Tabaris, que contratava dançarinas de luxo vindas da Europa, e boas orquestras, era o nosso Fred Astaire, conhecido como pé de valsa e pródigo 'pagador'.
Outro conforto facilitado pelo pai era possuir um automóvel , importado à época, porque ainda não tínhamos indústria automobilística; o dele era uma baratinha vermelha, conversível, que fazia a diferença!
Diante de todos esses objetos de sedução, como ter tempo para coisas prosaicas e desprovidas de aventura, como estudar? Pouco ia nosso notívago ao colégio e quando ao final do ano o pai vinha do interior com os dedos poluídos de anéis com enormes brilhantes, saber o resultado daquele período escolar, cheio de esperanças, recebia, não raro, a notícia de que seu filho tinha levado bomba, até porque pouco tinha frequentado as aulas. Ele mesmo contava que certa vez, cansado de ter notícias desalentadoras diante dos resultados de outros rapazes, o pai perguntara ao diretor:
- mas meu filho não recebe nem uma medalha de sabão?
O semblante do diretor deu-lhe muda resposta. Mas tudo se repetia a cada ano letivo que se iniciava, depois de muitas promessas de mudança de vida...até que um dia o velho pai cansou de sonhar em ter seu filho “dotô”, e resolveu comunicar-lhe que não voltaria a estudar na Bahia no próximo ano, para destruir o patrimônio que ele construíra com tanta determinação e trabalho. Queria vida de esbórnia? Pois a teria trabalhando duro no seu garimpo para receber a lição que merecia, sem nenhuma regalia de filho do dono. E ai, sim, “poderia jogar todo o dinheiro que ganhasse na lata do lixo”. Aquela decisão foi dura para o velho; chorou de pesar ao desistir daquele sonho.
O jovem Carlos era forte como um touro mestiço; um espécime de estatura acima da média, fortes músculos que exercitava lutando boxe, belos olhos azuis que sobressaiam sobre a pele morena como a da mãe e mais dourada ainda quando voltava à Chapada; os cabelos eram lisos, não apenas por causa dessa ascendência indígena, vez que o pai era descendente de holandeses.
Pois, muito estimulado pela possibilidade de trabalhar na lavra e conviver com o dia a dia dos garimpeiros, uma novidade excitante e romantizada em sua cabeça, foi ele para aquela rotina desumanizadora. Daquela luta só conhecia o brilho dos diamantes já lapidados, que lhe garantiam toda sorte de luxos.

O que sempre ocorre com essa realidade das corridas seja ao ouro, ao diamante ou qualquer riqueza que prometa o Eldorado, é que para esses lugares acorrem pessoas de toda qualidade; as que têm um sonho e trabalham duramente, apertando o cinto para economizar os tostões, passando até privações, torcendo também para “darem um bambúrrio” e mudarem a vida para sempre, até aquelas de pior espécie, que têm a maldade impregnada na alma; bandidos e facínoras cuja intenção é enganar, destruir e matar para roubar o mísero resultado de dias e dias de trabalho dentro das grotas, neste caso, em busca frenética, e o sonho na ponta dos dedos, na menina dos olhos, na lágrima causada pela dor dos ferimentos e da fome, e do frio.
Foi assim na Califórnia (USA), de 1848 a 1855, em que o fenômeno denominado “febre do ouro”, gerou uma violência tão cruel promovida por brancos que instalaram um tão absurdo estado de violência estimulado pela intolerância, principalmente contra os chilenos, que na escuridão da noite, excitados pela ganância, bebidas, festas e outros estímulos, saiam para caçá-los até a morte, inclusive à suas famílias, e levarem todo o fruto do trabalho duro, de privações e toda sorte de sofrimentos e sonhos acalentados.

Na Chapada a situação foi algo semelhante.
Ao final do século XIX o novo regime político ( República ) trouxera mudanças profundas e o medo deu origem ao “coronelismo”. O governo, como alternativa de convivência com o sertanejo, começara a vender patentes da Guarda Nacional - de até coronel -, nomeando-os para ocuparem cargos na administração federal, o que fomentou uma guerra entre os coronéis de Minas Gerais e da Bahia. O lado vencedor, liderado pelo coronel Horácio de Matos, foi considerado o grande líder na região, porque os mineiros serranos do lado de lá representavam grande população nos garimpos da Chapada, apesar de saírem daqui da Bahia as toneladas de ouro e diamantes para a Europa e todo o mundo, ainda que as Minas Gerais fossem também uma região de subsolo muito rico e de lavra...
Para o Coronel Herculano não foi diferente; após receber a patente à qual sua imensa fortuna fazia jus, depois de ter realizado o perseguido sonho de ter aquele filho e herdeiro, tratou de organizar o seu exército particular; os jagunços que fariam a sua segurança e a segurança da busca frenética dos diamantes no seu próprio garimpo...