segunda-feira, março 12, 2012

Procissão das almas (guacira maciel)

Tendo decidido ser feliz com Carlos, Marta foi viver naquela região de cultura tão diferente e inimaginável na sua concepção de moça criada na sociedade da capital, que sempre viveu entre a ancestral fazenda de cana-de-açúcar da família, antigo Engenho dos seus avós, e o luxuoso palacete de três andares, situado na região elegante da cidade, onde viviam todos os ricos e bem sucedidos, de família tradicional como a sua, ou emergentes...
Aquele amor quase impossível de ser vivido nesse ambiente, por absoluta proibição da família dela, encontrou outra forma de realizar-se. Fugiram para a Chapada e, depois de cumpridas todas as exigências necessárias à formalização do casamento, primeiro no civil e depois no religioso, por falta de padre – uma imposição do velho avô de Carlos – deram início à sua vida juntos. Passados os felizes primeiros meses, ela começou a sentir a angústia causada pelas profundas diferenças que se lhe impunham para continuar ali e constituir a família que sempre sonhara. Diferenças que lhe causavam enormes sofrimentos pelas dificuldades de conviver com aquele cotidiano.
As crenças no sobrenatural faziam parte da forma de viver daquelas pessoas, ou melhor, eram parte da cultura da região, e os episódios, os famosos “causos”, de qualquer natureza, eram referidos nas conversas com a maior naturalidade, não sem certos receios por parte dos mais supersticiosos, como uma experiência corriqueira. Assim, estava na época da “procissão das almas”, uma espécie de homenagem que acontece na Quaresma, em que os participantes cobrem-se com lençóis brancos e saem pelas ruas cantando e orando pelas almas, e Marta morria de medos dessas coisas, talvez por ter sido criada em meio às histórias contadas na fazenda pelas descendentes de escravos, que ainda alcançou vivendo por lá.
Carlos, apesar de ser um marido extremamente carinhoso e amar muito sua mulher, ainda conservava certos hábitos da época de solteiro, como aquele de sair para jogar de vez em quando com os amigos e primos. Dessa vez, Marta reclamara, mas ele prometera chegar cedo. Entretanto, já passava das onze horas e ele não aparecera; as crianças dormiam e ela, sentindo-se sozinha, começou a ter medo daquele silêncio...
---Meu Deus! Toda a cidade já dorme e Carlos não aparece!...
Então, o medo a fez abrir as janelas da sala e ficar olhando para ver se aparecia alguém que pudesse ir chamá-lo. De repente, quando deu por si, estava junto dela um senhor magro, vestido em elegantíssimo terno de diagonal, o que era comum aos ricos e por isso ela não estranhou...e disse-lhe:
---Marta, é perigoso você ficar aqui sozinha a esta hora; feche as janelas e vá dormir, porque Armando – primo de seu marido - me pediu para lhe dizer que ele já está vindo pra casa e que você não se preocupe, porque ele guardou o dinheiro que Carlos tinha no bolso.


Era hábito ele andar com muito dinheiro e financiar a farra, pagando para todos os amigos... Ela, então, sentindo muita tranquilidade com as palavras daquele senhor, agradeceu e fechou as janelas, indo descansar.
Na manhã seguinte, acordou cedinho para receber o pão e o leite das mãos do entregador e, tendo avistado Armando, chamou-o.
--Armando, muito obrigada por ter mandado aquele recado ontem, eu estava desesperada de medo esperando Carlos, que havia prometido chegar cedo...
---Recado? Não, eu não enviei recado algum pra você. De fato, eu guardei o dinheiro dele, mas não disse nada a ninguém. Como era a pessoa que falou com você?
Ela descreveu o senhor, e Armando disse, com os olhos arregalados:
-- Mulher!! Esse que você descreveu era um tio avô de Carlos e ele já morreu faz tempo!...
__ O quê?! Armando, você está me dizendo que eu falei com alguém que já morreu?? Meu Deus! Só me faltava esta nessa terra! Eu quero ir embora daqui!...vou enlouquecer...
E entrou em casa trêmula e aos prantos pra dizer ao marido, que dormia placidamente, que queria ir embora daquela lugar...


Bem... pelo menos, quando sozinha em casa à noite, ela jamais voltou a abrir as janelas.

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