Moça
de fino trato
Marta tivera uma educação
primorosa, realizada, inicialmente, por uma preceptora que lhe falava em
português e francês. Agora vivia com os tios num luxuoso palacete de três
andares, para onde fora aos 17 anos, após a morte da mãe e o desgosto e completo
afastamento do seu pai, Dr. Francisco, Bacharel em Direito e Juiz de uma
comarca longínqua, onde as condições de vida eram muito adversas. A esposa,
Dona Maria Francisca, uma mulher de ascendência aristocrática, para acompanhar
o marido passara por muitos sofrimentos, além de viver sem os confortos aos
quais fora acostumada, ora no ancestral solar do Engenho de cana de açúcar da
família, no Recôncavo Baiano, ora na cidade, num histórico sobrado, com
empregados que atendiam todas as necessidades da família. Apesar do pouco
conforto no lugar onde foram viver depois de casados, o Juiz e a esposa
tiveram uma respeitável prole de dez filhos. Numa das viagens para
Santa Maria da Vitória, cidade onde viveriam um bom tempo, Dona Maria Francisca, grávida de oito meses, teve que viajar até em "lombo de cavalo", em selas laterais próprias para mulheres; gestava seu penúltimo filho, sendo que todos os outros, alguns ainda bem pequenos,
ficaram doentes em consequência das condições impróprias daquela viagem, que durou quase um mês; episódio que acrescentou mais problemas à já delicada saúde da jovem senhora.
O Dr. Francisco era poeta e grande apreciador da música e da boemia,
tendo gasto grande parte da sua fortuna pessoal em promover festas durante as
quais hospedava, e nutria, em sua própria casa, toda a orquestra, que mandava
vir de fora para tocar em festejos da cidade, para desespero da esposa e
felicidade da prole. Era um homem manso e tinha um especial olhar sobre a vida.
Em momentos de intensa saudade, Marta, filha mais velha, costumava lembrar suas atitudes
como homem e como autoridade - "ele olhava a vida com a alma; nas questões mais
objetivas, quando tinha que tomar uma decisão como representante da Lei,
costumava assumir posturas fundamentalmente humanísticas para atender aos dois
lados, sem se afastar da ética e sem se corromper; quase um Salomão moderno..."-.
Como a filha mais velha, ela participou ativamente da atuação do
pai e deliciou-se com as mais ricas experiências da vida com ele,
principalmente quando se tratava de relações humanas, pois ele costumava levar
para casa os mais variados personagens populares, sem
discriminação, porque valorizava todo e qualquer aprendizado, sobremaneira
aquele adquirido com pessoas simples, do povo, que na sua concepção eram de uma
sabedoria extraordinária, e com quem “se tinha muito o que aprender”...Marta
também recebeu do pai toda a atenção quanto à sua sua formação cultural; ele
mandava buscar na Capital, caixas de livros que eram lidos e discutidos para
aprofundar os conhecimentos dela.
Porém, Dona Maria Francisca, que tinha outra forma de enxergar essas
questões, até porque envolvia a sua formação, a sua vida familiar e a educação
de seus filhos, não concordava com o marido, mas sendo uma mulher que fora educada para seguir as orientações do
marido, aceitava suas “esquisitices”, como se referia benevolente, embora sem ser submissa. Ela havia
vivido sempre num meio social de elite, convivendo com advogados, médicos,
políticos proeminentes, participando, como ouvinte, das reuniões de cunho
intelectual que a família organizava, e tido uma educação muito cheia de regras
e restrições. Diante disso, segundo Marta, as divergências familiares ocorriam
mais ou menos nessa perspectiva:
_ Dr. Francisco, meu marido, pelo amor de Deus, não precisa trazer para
dentro de casa todos os tipos esquisitos, necessitados de ajuda, que encontra por
ai ou no seu trabalho... nós temos filhas moças, além de não ficar bem para um
Juiz se envolver de forma particular com essas pessoas..
_ Deixa isso para lá, Dona Francisca... essas experiências também são salutares para os nossos filhos; eles precisam ter contato com outras nascentes de
cultura, tão ricas quanto a cultura formal à qual estamos, todos nós, acostumados.
Perceba que aprender vivendo é muito mais interessante do que só ter acesso a
essa cultura elitizada e restrita da escola e dos livros. Esses artistas
populares, então, são excelentes professores, os mais verdadeiros, pois sua
experiência parte da vida real... até você precisa abrir-se para uma nova forma
de enxergar isso.
O “Dr. Juiz” não os via como pobres diabos necessitados de ajuda e sim,
como fontes inesgotáveis de vivências e saberes com os quais, fora da toga, enriquecia
seus conhecimentos; costumava dizer que essas relações de amizade, de
camaradagem, lhe proporcionavam “beber diretamente em fonte rica e cristalina”. Entendendo que também o ajudavam muito no trabalho que tinha a realizar na comunidade.
Certa vez, num dia de feira na cidade onde viviam, em que chegavam muitas
demandas para Dr. Francisco, única autoridade presente no momento, e tendo que
resolver tudo o que aparecesse, ele chegou em casa com a habitual forma
bonachona.
_ Dona Francisca, mande acrescentar mais um prato na mesa... - já estavam lá os
dez pratos, de oito filhos e os deles dois -, porque o meu amigo, “seu”
Nequinho, vai participar da nossa refeição.
_ Faça o favor, “seu” Nequinho, entre
e fique à vontade.
O homem, enfiado na domingueira, entrou com o chapéu na mão, afinal era
dia de feira; mas com as calças arregaçadas por causa da lama, os sapatos, de
sola muito gastas e tortas, engraxados com esmero, e a indefectível sanfona
preta e madrepérola segura pelas alças. Envergonhado, ficou rígido à entrada
daquela mulher bonita e elegante, que ele nunca havia visto tão de perto. Dona
Francisca, muito séria, porte senhorial, embora simplesmente vestida com uma
saia preta enviesada e uma blusa de renda branca, arrematada na gola por um
camafeu antigo, era, deveras, uma figura imponente e oposta à do seu ilustre
marido bonachão.
_ Bom dia, senhor.
_ Bom dia Dona, discurpe se...
_ Ora, meu amigo, interveio o Juiz, fique tranqüilo. Tire a sanfona e
venha lavar as mãos.
Foi com o homem, para deixá-lo à vontade, e voltaram à sala, onde já se
encontravam os filhos, inclusive os pequeninos, sentados à mesa com a mãe, calados, esperando o pai e a grande novidade daquele dia. Fato é que, para
ajudar a resolver a contenda do “seu” Nequinho, tiveram que hospedá-lo por uma
semana, até que o “Dr. Juiz” conseguisse resolver tudo o que se fazia
necessário... mas para as crianças o melhor momento da peculiar visita, aconteceu durante as noites, após o jantar, enquanto durou a permanência do interessante senhor, quando
tinha sessão de música e declamação de quadrinhas populares engraçadíssimas, e até poemas recitados pelo "Dr. Juiz", com a vizinhança olhando com
ávidos e curiosos olhos através de todas as janelas de que a casa dispunha.
Para as crianças, nem se comenta, foi uma farra de novidades; “seu” Nequinho
contava casos e histórias extraordinárias que, entretanto, preocupavam Dona
Francisca, que sempre se mantinha meio alheia àquela “algazarra”, como se
referia...
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