domingo, setembro 24, 2006

Descartes; nem tanto ao mar, nem tanto à terra.(guacira)

"Não condenemos ao naufrágio o vivido..."

É isso! como consequência do exercício da dúvida, surgem os questionamentos sobre o estabelecido. Felizmente, há um constante movimento nesse sentido em todas as épocas e, quero crer, em todas as sociedades.
A velha edificação da fragmentação da ciência não teve uma trajetória diferente na historia da humanidade, embora as mudanças se dêem não sem muitas resistências por parte da academia, para ser desconstruída, ou , pelo menos, revista.
Todos nós estamos tendo o privilégio de viver novos tempos, mas precisamos reconhecer e agradecer aos homens que fizeram ciência em tempos idos, lançando as bases para o olhar que temos hoje(ou deveríamos ter) sobre ela e suas possibilidades.
Aqui, refiro-me em especial a esse homem de vanguarda, assim o compreendo, a quem muito devemos por ter sido quem lançou os alicerces da subjetividade do EU, tão fundamental ao mundo contemporâneo, não apenas falando de Arte, incluindo-se a Literatura, que é o meu lugar, mas a Psicologia e a Psicanálise, tão importantes ao homem para a compreensão de si e de suas relações com o mundo, e também a todas as ciências, se falamos de conhecimentos específicos a cada uma e ao todo que representam.
Entretanto, em sua época, o filósofo foi considerado um "ideólogo do individualismo", uma vez que questionou modelos fortemente estabelecidos pela orientação religiosa - em que o eu não era o sujeito da própria vida, e a superstição, que direcionavam a vida e o pensamento - abalando os alicerces de antigas construções, ao propor o lançamento de uma nova pedra filosofal.
Paradoxalmente, Descartes e Chandux não se entenderam, quando este último, um céptico, disse, já naquela época (1628), "não haver certezas em se tratando da ciência (aceitando-se apenas possibilidades)", o que também traz no seu bojo um pensamento bastante contemporâneo (falando-se de hoje), se sabemos que ele, Descartes, introduziu a dúvida na investigação e na pesquisa científica e filosófica como seu principal elemento, desencadeando um movimento libertário, e oxigenador, quanto a essas questões. Àquela época vivia-se um momento de incertezas e de anarquia metodológica, em consequência do fim do tomismo, necessitando-se novos caminhos para a "verdade" a partir do espírito. E urgia uma outra base para a organização e a legitimização científica, através de um novo método de busca.
O que creio muito positivo no pensamento de Descartes é que ele introduziu a dúvida contra o embotamento do pensamento feito pela via da superstição e limitação imposta pela fé. Não se trata aqui de referendar o rigor da exatidão na ciência como resultado último (na pesquisa, sim.) mas, ao contrário, estabelecer a condição, a consideração, o reconhecimento da existência das infinitas outras possibilidades; dos novos e múltiplos olhares.
Observando-se a sua "àrvore do saber", embora fragmentada, encontro um ponto de convergência com o pensamento contemporâneo, que são o que considero relações entre as ciências (fragmentada no pensamento da época); seria já o caso de se pensar , ainda que de forma incipiente, no estabelecimento de uma base para as redes, as relações sistêmicas existentes entre elas? Ele entendeu que a Física em síntese com a Metafísica era a ciência-fundamento do saber (ainda que considerado o pai da filosofia mecanicista), e não foi ela que nos abriu o caminho para a relativização do olhar? as muitas possibilidades, já que ciência é para a vida? não foram os efeitos quânticos, fundamentais para descrever a "emergência ou geração do EU consciente"?
Outro ponto positivo e contemporâneo em Descartes é que ele entendia que a ciência e o conhecimento precisavam ser democratizados e não, ser privilégio de poucos, de uma elite, a dos já iniciados; pensamento que era manifesado a partir de Pitágoras e Copérnico.
Na verdade, observo que de tempos em tempos o mundo passa por um período, uma fase de exaustão, tratando-se do estabelecido, precisando (ainda bem) de novas análises, de avaliações e novos olhares sobre as construções humanas; e o mais interessante, é que isso chega naturalmente; de repente aparece um "louco" que percebe e lança novas propostas, novas idéias sobre essas construções . Estamos vivenciando mais um deles; pelo menos assim o percebo. Existem muitos questionamentos na minha e, creio, na cabeça de meio mundo neste início de um novo século. Estou querendo, com o olhar da poética, posicionar o pensamento de Descartes, não em relação ao racionalismo, mas à instauração, àquela época, da subjetividade; à inauguração de propostas sobre o EU ainda hoje referendadas, pois acho que sobre elas se passou um rolo compressor, sem relativisar o olhar; até buscando amparo na própria filosofia.
Embora aparentemente o nosso momento esteja mais para Chandoux, que compreendia a ciência como sendo um mundo de possibilidades, também entendo que Descartes sempre foi avaliado, analisado com certa crueza, com um olhar muito restritivo, considerando o que sobre seu pensamento sempre se disse e ainda que no seu "Discurso do Método" , considerado um "manifesto do racionalismo", ali iniciado, tenha dito: "não devemos acreditar nos muitos que dizem que só as pessoas livres devem ser educadas, deveríamos antes acreditar nos filósofos que dizem que só as pessoas educadas são livres"; nestas palavras observo um manifesto de sensibilidade. E mais, entendia que a filosofia precisava deixar de ser uma ciência de contemplação para tornar-se um pensar dinâmico que pudesse ser utilizado como insrumento de progresso, ainda que tenha exagerado quando acreditou que o homem pudesse ser senhor e dono da natureza.
Nosso problema é a insuportável tendência aos recortes, o que nos tira a condição de perceber o sentido do todo. Ao meu olhar, o ponto fundamental no pensamento de Descartes é a ruptura com a imposição religiosa sobre as questões humanas e o pensar, comum em sua época, e a consequente "descoberta" do EU, no sentido de mostrá-lo, e às suas questões. Entretanto, as "Quatro Regras do Método", que ele próprio utilizava como fio condutor de sua forma de analisar, eram a meu ver, extremamente restritivas e incoerentes com a essência da sua proposta. Por exemplo, ali ele diz que se fossem "rigorosamente observadas", como ele próprio fazia, chegar-se-ia ao conhecimento; vejamos:
Jamais aceitar como exata coisa alguma que não se conheça à evidência como tal, evitando a precipitação e a precaução, só fazendo o espírito aceitar aquilo, claro e distinto, sobre o que não pairam dúvidas.
Dividir cada dificuldade a ser examinada em quantas partes for possível e necessário para resolvê-la.
Por em ordem os pensamentos, começando pelos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para atingir, aos poucos, os mais complexos.
Fazer para cada caso, uma enumeração tão exata e uma revisão tão ampla e geral para ter-se a certeza de não ter esquecido ou omitido algo.
Segundo ele, com esse método não existirá nada tão difícil " que não seja alcançado, nem tão escondido que não seja descoberto".É nesse momento que divirjo fundamentalmente do seu radicalismo e instauro na minha cabeça uma rejeição ao cartesianismo como o entendo , vivendo no mundo contemporâneo, embora não de forma tão abrangente, como já mencionei. Trocando em miúdos, o pensamento cartesino, de forma ampla, preconizava que se lançasse dúvidas em tudo que não pudesse ser racionalizado, só permitindo ao espírito aceitar algo sobre o que não pairassem dúvidas! Proposta que dá uma bela trombada no pensamento contemporâneo: o das não-certezas, mas das amplas possibilidades! Para comprovar, aí estão as propostas da Física Quântica nos sinalizando que o mundo exterior só existiria a partir do mundo interior, logo, aquele não seria mais real que este, como fomos condicionados a pensar, o que talvez seja uma as razões do empobrecimento e da ausência de novas e ricas experiências de vida; nessa perspectiva, não seria esta a razão por que repetimos sempre as mesmas experiências? Inclusive, até pelo medo de lançar mão desse potencial interior?
Assim, se o observador interfere nos resultados da experiência observada, também tem pertinência a participação fundamental da realidade psíquica, que já não nos limitaria a simples respostas a partir do que é captado pela autonomia ou linearidade do cérebro. Dessa forma, retornamos ao princípio dessa discussão, quando nos referimos ao EU instalado por Descartes, cuja importância para fundamentar um novo olhar sobre a ciência, imagino, nem ele mesmo avaliou.
Aqui poderia fazer um paralelo com a Arte, em que a subjetividade, uma condição de percepção transcendente, em cujo íntimo estão, além da realidade psíquica, as emoções, aliadas à concepção de beleza estética, histórias de vida, dores, ausências, trazendo à tona uma realidade modificada, recriada pelo olhar do artista, uma vez que é seu mundo íntimo que faz a mágica da realidade exterior existir.
Como seu próprio método ensina, será preciso separar em partes para que se faça uma análise justa. Entretanto, por em ordem os pensamentos começando pelos mais simples até os mais complexos, seria contraditório na ótica atual , se entendemos que o conhecimento ocorre em rede, desconstruindo a idéia de linearidade, uma vez que o pensar não acontece numa ordem que se possa classificar como lógica igual para todos. Assim podemos entender, também, quanto à certeza e exatidão que acreditava ser possível alcançar em cada caso.
Com o pensamento de que suspeitássemos das "verdades aceitas", sob o ponto de vista do direcionamento através de restrições impostas por crenças, ele lançou bases para o pensamento contemporâneo sobre nossas relações com a natureza; o materialismo e a própria consciência, no sentido de percepção do SER.
É com esse olhar mais abrangente que considero o "Penso, logo existo", que tanto se critica, mas que, distorcido, tanto pelas questões aqui analisadas, como pela tradução, foi tão mal compreendido.

3 comentários:

Guacira Maciel disse...

Concordo que incluam meu blog no http://freearticle.name; entretanto gostaria de mais informações sobre esse espaço, que desconheço e, como ele funciona.
Obrigada.

lurdeskida disse...

Estou a escrever para agradecer o seu comentário,obrigada é bom saber que alguém lê e presta atenção ao que escrevemos.Até mesmo os desabafos da solidão...Nunca tinha estado sozinha por isso não tinha noção do significado dessa palavra,agora sei pelo menos um pouco o que ela significa e como nos dificulta o passar dos dias.Quero lhe dizer que tambem eu sou Educadora de infância e que são elas as minhas crianças que me ajudam a passar os meus dias com alguma alegria.Claro que o meu filhote me faz muita companhia em casa ,mas,não é a mesma coisa ...Sinto falta das nossas conversas ao fim do dia enquanto estavamos na cozinha a cozinhar,do seu beijos antes de adormecermos agarradinhos,enfim são coisas que só ele sabe fazer.
Beijos e obrigada por me dar um pouco de atenção mesmo sem me conhecer.

Guacira Maciel disse...

Maria do Céu,

Obrigada por seu comentário; ele é importantíssimo, por vir da profissional e pessoa envolvida com as questões da Natureza (do Universo), que você é.
Sua opinão é um retorno e um incentivo para que eu possa continuar. São essas respostas que nos direcionam o caminho; quem esceve não faz nada sozinho...quem lê, na verdade é a fonte, a nascente de onde buscamos elementos para continuar.Obrigada.
Guacira.
Espero-a aqui mais vezes.