domingo, novembro 05, 2006

Sobre plágio... (guacira maciel)

Dia desses estive lendo na Internet sobre uma homenagem dos EEUU a Machado de Assis; entrei para entender qual o interesse desse país no assunto, mas não lembro o porquê de ter continuado sem resposta. Entretanto, me interessei por ser autora e pela ênfase dada a uma colocação que o autor brasileiro, segundo a reportagem, teria feito: de que as pessoas que escrevem seriam plagiadores...
Bem...Podemos olhar a questão sob vários ângulos; só não podemos interpretar ao pé da letra, como se diz, mesmo porque Machado já não poderia dar explicações complementares, nem tampouco considerar assunto encerrado sem uma análise mais aprofundada, num contexto cultural contemporâneo, completamente diferente daquele em que viveu o referido autor.
Começarei indo ao Aurélio buscar o conceito de plágio:

Plágio – Ato ou efeito de plagiar.
Plagiar – v. t. direto. 1. Assinar ou apresentar como seu (obra artística ou científica de outrem).
2. Imitar (trabalho alheio).

No primeiro conceito, acredito, não poderá ser incluída a situação à qual se referiu Machado de Assis, porque é muito grave assinar ou apresentar como sua, a obra, o trabalho de outrem; isso se chama roubo, usurpação e é caso de justiça. Mas a segunda, sim. Entretanto, teríamos um outro olhar e muitas nuances a serem consideradas numa análise.

Que tenha conhecimento, Machado teria dito que “o autor é um reflexo do que lê”; para ele, o autor é “antes de tudo um grande leitor”. Mais tarde José Saramago disse que “os autores são filhos de suas leituras”; já de acordo com o escritor argentino Jorge Luis Borges “o escritor é um leitor que só escreve porque esqueceu o que leu”. Para Harold Bloom, crítico americano, os grandes autores, na verdade, interpretam de forma “tendenciosa” as pessoas que leram num passado próximo ou longínquo.

A partir desse ponto, farei, eu, algumas considerações sobre essa história de plágio: Desde o momento em que, por uma questão puramente pedagógica, comecei a escrever sobre interdisciplinaridade, para ajudar nosso professor a mudar a sua “práxis”, abrindo-se para a realidade do mundo contemporâneo e ampliando o olhar sobre novos paradigmas, deparei-me com algo muito maior do que eu pudesse imaginar e, em sendo assim, me dei um tempo para estudar um pouco mais.
Será necessário abrir-se para essa compreensão nova de realidade; de mundo. A natureza é una, não podendo ser entendida como feita de elementos independentes; de sistemas desvinculados em sua gênese; sobre isso o austríaco Fritjof Capra, Doutor em Física, tem uma interessante teoria, que classifica como ecologia profunda.... Mas essa discussão ficará para outro momento, porque entraríamos em muitas outras questões fantásticas, interessantes e curiosas, que precisaríamos analisar. Voltemos à nossa: o que disseram que Machado falou sobre plágio...ou entenderam que ele teria dito, a partir de um posicionamento pessoal, que é o ponto onde pretendo chegar. Já a partir daqui, posso dizer, com o meu olhar, que essa colocação foi “tendenciosa”, se tomarmos Harold Bloom como referência, isto é, o olhar que, imagino, deva ter sido o de um jornalista sobre a questão. Então, poderíamos nos perguntar: qual teria sido o seu objetivo ao colocar essa notícia na Internet? má fé? mentira? loucura? acho que não! Apenas a sua forma de interpretar o que leu em Machado ou sobre ele, e com um objetivo específico, sem dúvida. Inclusive, numa linguagem jornalística, que tem implícita uma intencionalidade. Tudo precisa ser considerado.
Machado teria dito que o “autor é um reflexo do que lê” e que ele é, “antes de tudo um grande leitor”. Que eu saiba, Machado era um homem razoavelmente equilibrado (se tomamos como referência o mano Caetano: “de perto ninguém é normal”), e não poderia dizer que, mesmo ele (Machado), que é grande, estaria isento de influências. Acho até que quando falou, referia-se à sua própria obra; ele foi um homem de muitos contatos, inclusive fora do país e não poderia achar-se um gênio ou o primeiro grande criador...Nós somos um reflexo de todas as nossas vivências, sejam experiências pessoais, sejam nas relações com o mundo; tudo está sistêmica e radicularmente unido; somos um, com os outros e com o Universo. Por exemplo, se estou aqui, agora, escrevendo sobre esse assunto, é porque li algo sobre essa querela; eu iria inventar que alguém falou isso pra poder escrever? nem a ficção mais rica e criativa está isenta de reflexões e reflexos de outra coisa ou de alguém.
Gabriel Perissé, defende a tese do "plágio criativo", mas Saramago teria dito que os autores são “filhos de suas leituras” e por acaso não foi isso mesmo que Machado disse? aliás, se Saramago tivesse vivido antes de Machado, eu teria dúvida de quem o teria dito primeiro. Ambos sabiam que qualquer coisa que tenham dito como autores, alguém, em alguma parte do mundo, já teria dito antes, fosse em que idioma fosse.
Aliás, sabe quem já teria dito isso antes desses dois? O meu caríssimo Einstein! Segundo ele, até os dezoito anos o ser humano cria e a partir daí, o que fala ou pensa é fruto da pesquisa de outrem; aqui já estou acrescentando alguma coisa minha...
Pode um autor sofrer influência, forte influência de alguém que admira ou que exerce, em determinado momento histórico, um fascínio sobre outros autores, iniciantes ou não. Por exemplo, é sabido que Machado de Assis foi um tradutor de Vítor Hugo para o nosso idioma, tendo, inclusive, traduzido um dos seus maiores romances e, à época, se referido aos autores brasileiros seus contemporâneos, que eram influenciados por este. Aliás, ele próprio, isso não é ignorado, sofreu influência de Vitor Hugo, ocorrência que está clara em sua obra. Sobre isso fala Eugênio Gomes, em relação à “ As Ocidentais”, de Machado, onde identifica uma “alusão” (termo muito aceito nestes casos) a um dos conhecidos livros de Hugo, “As Orientais”, outro livro por ele traduzido. Mas esse não é o único trabalho onde são identificadas “alusões”; e seria de admirar que não terminasse por ocorrer, uma vez que Machado era, como já colocado, seu conhecido tradutor por essas bandas de cá, embora percebamos diferenças marcantes, resultantes dos traços de personalidade, e experiência de vida de cada um: Hugo, mais entusiasmado, uma exuberante e quase explosiva eloquência; Machado, mais suave e discreto, algo pessimista e descrente, muito embora possamos também observar-lhe uma certa melancolia. Outro autor em cuja obra Machado buscou algumas pinceladas foi Thomas Hardy, segundo Hélio Pólvora , que encontra similaridade na descrição do olhos da polêmica Capitu com a personagem daquela obra.
Saindo um pouco da experiência específica de Machado, e ampliando mais o foco sobre esse polêmico assunto, diria que só imitamos alguém que admiramos, por considerá-lo grande ou, no mínimo, que nos chama a atenção por alguma razão, inclusive por dizer o que gostaríamos; um exemplo nos vem do século XII (isto, lógico, li em algum lugar...) na experiência de John Salisbury, que dizia a seus alunos que o segredo para escrever bem, estaria na leitura da obra dos mestres do passado e depois a busca da condição de escrever como se os tivesse em sua própria alma, por considerar essa forma uma justa homenagem (o que os falecidos achavam, jamais saberemos). Ou seja, em linguagem bem contemporânea e pedagogicamente correta, estamos falando em contextualizar o conhecimento apreendido.
Acredito que se algum autor houver, que imagine poder dizer algo inédito em sua obra, tiro aqui suas esperanças; jamais o fará, porque lá um dia alguém aparecerá com um precursor seu, encontrado em algum cantinho deste vasto mundo, que já terá dito a mesma coisa ou quase. Logo, é mais saudável e honesto admitir de uma vez o que aqui e em muito outros trabalhos está posto, nada é inédito.
A originalidade não consiste em dizer coisas inéditas, isto é impossível; mas em dizer coisas já ditas, da sua forma, do seu jeito próprio, a coisa mais banal se tornará nova. Só considero inédito o que eu mesma disse da minha forma, antes de torná-la pública.
Há poucos dias alguém escreveu num site: nada é novo sob o sol. Bem...Em Eclesiastes 9 e 10 está escrito: “Não há nada de novo debaixo do sol” Em parte concordo, mas há uma sutil diferença entre o que há no texto bíblico e o que li no site... Para mim, a cada amanhecer tudo, absolutamente tudo, é novo!
Continuando, pode-se realizar um trabalho partindo de uma ideia de outra pessoa, de um fragmento do trabalho de outro autor, podem ser usadas palavras ditas por alguém, usar metáforas, frases até; só que ditas de forma tão pessoal, que se consiga torná-la original , fazendo com que o autor “imitado”, ou tomado como referencia, nem seja lembrado por quem lê o novo texto.
Há uma assimilação que ocorre de forma sub reptícia, através da leitura; eu sou parte do que vivencio, e ler é experienciar uma realidade que não vivemos, mas que nos traz ganhos, nos amadurece...então, por que leríamos os clássicos? a isso chamamos cultivar; e cultura tem o mesmo significado de cultivo da Agricultura, isto é, fazer crescer, desenvolver sementes; por acaso, a obra de outros autores não são sementes para quem escreve? o que leio da obra de outro autor, se torna um patrimônio meu... a originalidade está implícita na arte de redigir de cada um; de dizer o que alguém já disse, de forma original.
Ninguém começa nada do zero, ainda que todas as luzes se apaguem, que saiamos da ribalta e nos isolemos numa ilha deserta. Nossos referenciais nos acompanharão, porque estão em nós; somos UNOS com os outros... Quando me entendo como sujeito; como ser estando, com uma identidade íntima, já incorporei saberes; primeiro, através da herança genética, depois espiritual (ou a ordem é inversa?) e, ao lado delas, outras com o mesmo grau de importância. Com certeza não começamos na infância, embora nesta fase se constituam, se organizem importantes fundamentos que serão referenciais básicos para toda a vida; a nossa estrutura primeira, o nosso chão; e será com o pé nele fincado que poderemos erguer-nos e desabrochar.
Não podemos tomar a decisão de começar do zero, nem de nós mesmos. Aonde iríamos buscá-lo? em que lugar?
Depois de todas essas reflexões, saio, eu mesma, com mais certeza de que a originalidade do autor está no olhar que tem sobre cada coisa e a forma de colocar no seu próprio texto. Existe um legado da humanidade, construído por muitos, que se constitui patrimônio de cada um de nós em todas as gerações que vão surgindo. O artista, o autor não é mais dono de sua obra a partir do momento em que ela lhe escapa das mãos, passando a incorporar esse acervo. Por outro lado, não poderá ser pretensioso a ponto de pensar que pode anular tudo o que já foi pensado, dito e construído, e, simplesmente, imaginar (haja imaginação...) que é um grande gênio criador, até por uma questão de respeito ao trabalho do seu semelhante.
Quando disse o que está aqui registrado, deixei de dizer mil outras coisas, tão importantes quanto estas, que me viriam à cabeça, não tivesse que fazer opções. Isso, alguém também já disse antes de mim, com outras palavras; mas estarei "cometendo" plágio?
As palavras são elos, como pontes erguidas entre as pessoas e o eterno; um (dos) caminho que poderemos utilizar para nos comunicar; caminho que nos leva ao outro... Se no meu texto, cito um outro autor, tomando-o como referência para o que quero dizer, estou respeitando-o; estou buscando apoio; estou apoiando-o, reforçando o seu pensar (dizendo: olha, fulano também pensou como eu...)e, acima de tudo, estabelecendo elos, criando laços que manterão um ecossistema nessa "ecologia profunda" da qual nos fala Capra.
Se escrever é uma arte (como entendo) preciso fazê-lo de forma original e criativa; buscar a forma mais “tendenciosa”, como referiu Harold Bloom, para dizer do meu jeito o que já foi dito por alguém , em algum lugar. Sendo uma busca dupla da arte: dizer alguma coisa com sensibilidade, erguendo caminhos imaginários que nos levem a alguém, e fazê-lo de forma, esta, sim, inédita, levantando novos véus e descortinando novos e insondáveis horizontes, que também poderão servir-lhe de caminho. Assim, na literatura (neste caso específico), em que pese a força da subjetividade e criação, a ideia que explode numa obra, já foi pensada e/ou dita por, pelo menos, uma outra pessoa.